Durante uma das minhas idas à linda fortaleza de San Leo, onde há salas que expõem alguns objetos usados em torturas durante a Inquisição, fotografei os painéis explicativos deste triste período da história ocidental e traduzi os textos para compor esta postagem.
Antes de tudo, é primordial saber que a Inquisição foi um tribunal da Igreja Católica encarregado de processar os heréticos, isto é, aqueles que cometiam reatos contra a fé.
Teve suas origens entre o fim do século XII e início do século XIII, quando o papa delegou os próprios poderes nessa matéria a alguns juízes por ele nomeados: os inquisidores.
inquisição
(latim inquisitio, -onis, pesquisa, investigação, inquérito)
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
Inquisição medieval na Itália: torturas e fogueiras em nome de Deus
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No final do século XV, foi instituída a primeira Inquisição estável centralizada, a espanhola, à qual sucederam, no século XVI, a Inquisição portuguesa e a romana.
Papa João XXII recebe uma obra de Bernard Gui (século XIV).
Bernard Gui, inquisidor francês da Ordem Domenicana, escreveu que a Inquisição tinha a tarefa de perseguir todos aqueles que:
se destacam da comunidade e minam a autoridade do papa e da Igreja. Bernard Gui
Categorias dos imputáveis
Eram várias as categorias dos imputáveis, assim classificadas:
- Os HERÉTICOS: aqueles que, abraçada a heresia (isto é, o erro na fé), perduravam nessa opinião;
- Os SUSPEITOS: os que deram ouvidos a prédicas de heréticos ou fizeram parte de suas orações (distinguiam-se, a esse propósito, níveis diferentes em relação ao zelo demonstrado em tais prátcias);
- Os CAELATORES: os que se comprometiam a não denunciar os heréticos declarados e os suspeitos de heresia;
- Os RECEPTORES: os que, por pelo menos duas vezes, conscientes daquilo que faziam, haviam hospedado heréticos e consentido-lhes a prática das próprias atividades;
- Os DEFENSORES: aqueles que tinham defendido os heréticos com a palavra ou com a ação;
- Os RECIDIVOS: os culpados por terem retornado à heresia depois de jurarem tê-la abandonado.
No momento em que fosse comprovada ou suspeitada a presença de um herético, o inquisidor, nomeado pelo papa e acompanhado por um representante do bispo, ia até o local para implementar o processo.
Os éditos do inquisidor
Após homenagear as autoridades civis convidadas a colaborar (sob pena de excomunhão ou, nos casos mais graves, ameaça de destituição), o inquisidor, junto com os outros componentes do tribunal, promulgava dois éditos:
- Édito de fé: qualquer pessoa que tivesse conhecimento da presença de heréticos deveria denunciá-los.
- Édito de graça: estabelecia um período de tempo (geralmente entre quinze e trinta dias) em que o herético, no caso em que fosse autodenunciado, podia obter o perdão após a absolvição de uma penitência.
Aqueles que, após uma denúncia, uma testemunha de terceiros ou somente em base a boatos, eram considerados heréticos vinham convocados à presença do inquisidor.
Frequentemente o imputado, considerado um sujeito perigoso, vinha preso enquanto era instruído o processo e, na prisão, era informado dos suspeitos e denúncias formuladas contra ele.
Convidado a defender-se sozinho, o imputado podia fazê-lo apresentando memoriais e respondendo às perguntas do interrogatório, o qual acontecia com a presença dos “homens de bem”, aos quais o inquisidor tinha que pedir um parecer antes de emitir uma sentença.
No caso em que não houvesse uma confissão imediata e espontânea, era admissível o recurso à tortura.
Interrogatório do imputado
Durante o interrogatório, o inquisidor procurava, com todos os meios, obter a confissão do imputado.
A habilidade de conduzir o interrogatório era uma prerrogativa dentre os méritos do inquisidor especializado e não faltava material sobre esse assunto em que eram expostas, detalhadamente, as regras para tal fim.
Dentre essas, havia a regra de manter o imputado o máximo possível às margens das acusações que lhe eram contestadas.
Ambiguidade e contradição nas respostas eram consideradas indícios certos de culpa e a hesitação era frequente, pois, propositalmente, as perguntas eram formuladas com um jogo de sofismas e armadilhas que tinham como objetivo implícito gerar confusão e anular a eficácia de qualquer estratégia defensiva.
A insídia dos quesitos impostos pelo inquisidor, as complicações desorientadoras da doutrina e a ameaça da tortura ou da fogueira valeram para obter prontas confissões de delitos que nunca foram consumados e para alimentar as lendas, cujo único fundamento real era o terror da pior punição.
Engano e tortura
Engano e tortura eram colocados a serviço de Deus para que tirassem a alma dos imputados subjugados ao demônio. Recorriam-se às maneiras brandas, assim como aquelas fortes, e sempre se fazia em nome de uma causa superior: a salvação do danado.
O inquisidor trabalhava com astúcia para conquistar a confiança do herético, apresentando-se como um homem de compaixão, interessado, acima de tudo, à sua redenção.
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No momento em que o condenado tivesse confessado e revelado os nomes dos adeptos, era-lhe prometido que teria logo a sua liberdade. Se o imputado, depois, clamava piedade pelas revelações dadas, era-lhe assegurada a garantia de um tratamento até mesmo melhor em relação àquele desejado.
Não era infrequente que agentes especiais do inquisidor se infiltrassem nas celas dos imputados e com a arte da persuasão lhes convencessem a falar. Estes últimos, então, de confissão em confissão eram induzidos a dar informações sem saber de estar sendo interrogado oficialmente.
As mesmas informações eram depois usadas como argumentos úteis para formar a prova para a sentença final.
Acontecia porteriormente que os mesmos companheiros de prisão do imputado fossem induzidos a tal medida delatória com a promessa de benefícios pelo serviço prestado.
Quando o herético se recusava a confessar
Quando o herético colocava resistência e permanecia obstinado em não confessar, recorria-se a meios persuasivos ainda mais sorrateiros, como, por exemplo, permitir a visita de sua esposa e filhos para que a saudade de seus entes queridos o convencesse a trocar de ideia.
Nos confrontos do imputado, alternavam-se afagos e atos violentos e, jogando com os tormentos produzidos pela tática do reenvio, deixavam-no apodrecer em celas úmidas e fedorentas, onde era tratado apenas com pão e água, ou então o transferiam, por um breve período, para quartos mais cômodos onde o regime alimentar era também melhor.
O tempo terminava quase sempre por triunfar sobre a obstinação e, depois de meses de tormento, o imputado convencia-se de pedir para ser ouvido e confessar qualquer coisa desde que toda aquela tortura fosse cessada.
Inquisição na Idade Média: as condenações
No fim do processo, era infligida a pena que podia variar por gravidade e crueldade da condenação segundo o nível de culpa acertada.
A proclamação da sentença era feita publicamente no curso de uma assembleia chamada de sermo generalis e depois era rebatizada de auto de fé (ato de fé) na época da Inquisição espanhola.
O inquisidor, em nome da fé, confutava a heresia e recebia o juramento das autoridades laicas que prometiam colaborar para contrastá-la: a isso seguia-se a verdadeira e própria proclamação de absolvição ou condenação.
Esta última previa, nos casos mais leves, a simples abjuração, acompanhada, às vezes, pela imposição de um sinal feito com fogo sobre o corpo ou costurado nas roupas.
Geralmente tratava-se de cruzes de cor vermelha ou amarelo vivaz. Nos casos mais graves, a sorte do culpado era a prisão perpétua ou a pena de morte.
Os heréticos impenitentes eram queimados vivos quando rejeitavam a abjuração até mesmo de fronte à fogueira. Os arrependidos eram enforcados, decapitados e queimados depois de mortos.
As chamas da Inquisição
A Inquisição não pronunciava nunca a palavra condenação à fogueira, pois esta não era contemplada em nenhuma lei canônica. Limitava-se a declarar os heréticos sem esperança alguma de conversão e, em virtude da gravidade de seus pecados, de afastá-los da Igreja, entregando-os às autoridades civis para a punição.
O Santo Ofício, portanto, punia o pecado, reservando ao juiz civil a tarefa “mais suja” de punir o pecador.
Tal era o terror de morrer queimado vivo que as conversões por conveniência feitas no último minuto tornaram-se tão numerosas que virou quase uma exceção morrer queimado em vez de estrangulado.
É difícil dizer qual dessas duas soluções fosse a preferível, já que os justiceiros espanhóis eram muito hábeis em manobrar o instrumento de suplício (o garrote) até conseguir prolongar a agonia por um longo tempo antes de causar a morte.
Flagelação
Era frequente que o imputado morresse na prisão antes de poder presenciar o auto de fé: neste caso, o cadáver era igualmente queimado na fogueira.
Quanto à tentativa de suicídio na prisão, para evitar a crueldade do suplício, era severamente punido em caso de descoberta, já que era considerada uma manifestação ulterior de heresia e incluída nas provas contra o suspeito.
A flagelação era a forma de punição que os inquisidores preferiam e infligiam sem alguma piedade nos indivíduos de qualquer idade, de ambos os sexos e com qualquer estado físico.
Nos manuais era descrito até o número de chicotadas, geralmente duzentas. Somente em casos excepcionais é que tal número podia ser dizimado.
Uma símile quantidade de chicotadas era considerada aquela suportada pelos corpos extremados por uma prisão longa e pelas torturas sofridas durante os interrogatórios.
O castigo era infligido em modo solene durante os autos de fé e com a presença de um grande número de espectadores.
Eram poupados os condenados que faziam parte do clero, subtraídos à vergonha da flagelação pública e, portanto, fustigados dentro das paredes dos conventos.
A pena da vergonha
A verguenza (vergonha) era símile à flagelação: desnudados até a cintura, os culpados eram levados em cortejo até as cercanias da cidade enquanto um pregoeiro lia em voz alta o texto da sentença.
Era considerada uma pena mais branda que a flagelação e a ela se recorria em casos de idade avançada do condenado ou se o seu estado de saúde frágil desse a entender que não sobreviveria.
Também o sanbenito, isto é, a obrigação de vestir as roupas típicas dos penitentes, entrava nas medidas previstas pela sentença.
O vestuário do penitente consistia em um tipo de saco de tela crua, coberto de cinzas e marcado com duas cruzes amarelas: uma na frente e outra atrás. Era chamado saco bendito, daí a abreviação de sanbenito.
Levá-lo significa um sinal de vergonha, por isso era considerada uma pena severa. Evitar vesti-lo, no caso em que fosse prescrito, era considerado reato. A vergonha da heresia não devia poupar nem mesmo os mortos.
Remonta a 1229, o decreto do Concílio de Toulouse: cada habitação, onde fosse acolhido um herético, devia ser demolida enquanto a área na qual surgia era declarada “amaldiçoada”.
Abaixo, alguns instrumentos de tortura que fotografei na Fortaleza de São Leo.
A tortura
A lei canônica proibia aos eclesiásticos de participar de qualquer procedimento em que a tortura fosse usada para causar sofrimento útil à confissão dos imputados, mas com o papa Alexandre IV (1256) triunfou o parecer oposto.
O papa remediou esse obstáculo ao decretar que os inquisidores e seus colaboradores podiam se dar reciprocamente a absolvição por “impureza”, dos quais se manchavam assistindo a tais espetáculos. Além disso, podiam conceder-se dispensas para eventuais irregularidades cometidas no exercício das próprias funções.
Desse modo, a tortura, que era considerada um meio eficaz para obter confissões rápidas, limita o tempo da detenção e dizima os custos do tribunal, tornando-se uma prática habitual nos processos.
Além dos inquisidores, os representantes do bispo, um chanceler e um secretário presenciavam o ato da tortura executado por um carnífice, geralmente mascarado ou coberto com uma capa para que não fosse reconhecido.
Depois de ser levado à sala de tortura, o imputado era desnudado e imobilizado em um poste.
A humilhação da nudez
O desnudamento, em tal ocasião, não era somente um pretexto para a humilhação do imputado, mas uma necessidade real: as cordas e os instrumentos de tortura deviam, antes de tudo, poder amarrar livremente todas as partes do corpo do imputado.
O “trabalho” devia ser feito lentamente para que resultasse eficaz e podia ser repetido, embora a norma impusesse que não se devia torturar mais de uma vez as mesmas pessoas.
Mas nada impedia que a prática fosse realizada em intervalos de tempo.
Durante a tortura, o secretário transcrevia em um protocolo ou ato tudo o que acontecia, anotando até mesmo os gritos e as implorações dos coitados.
As modalidades mais recorrentes eram a roldana e a tortura da água. O primeiro método consistia em amarrar o imputado com as mãos atrás das costas e içá-lo com uma roldana: era assim deixado balançar com um grande peso atacado aos pés nus.
Torturar com água
Na tortura com água, a vítima era colocada deitada sobre uma espécie de tábua com pontas afiadas, em cuja extremidade havia uma cavidade onde era colocada a cabeça do imputado, bloqueada na altura do pescoço com um anel de ferro.
Cordas bem estreitas amarravam seus braços e pernas, enquanto com uma peça pontiaguda era aberta a sua boca para derramar com um funil um quartilho (era a dose mínima prevista) de água salgada.
Quando a vítima dava sinais de sufocamento, a tortura era suspensa temporariamente com o fim de recolher a eventual confissão.
As instruções relativas à aplicação desses, como de outros meios de tortura, eram extraordinariamente detalhados, e os métodos mais frequentes eram a roda, a estaca de tortura, o esmagamento, a marcação com fogo, o esfolamento, a mutilação e a deformação dos membros.
Em alguns casos, as vítimas deram prova de tal resistência física que nem mesmo as piores atrocidades conseguiram mudar seu comportamento frente ao pedido de colaborar.
Em outros casos, bastava pouco para se obter do imputado um estado de prostração e atordoamento que o induzia a confessar qualquer coisa.
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*Fonte: Painéis explicativos no interior da Fortaleza de San Leo (tradução livre minha para este post).