É largamente noto que a historiadora da arte estadunidense, Roberta Olson, em um artigo publicado em 1979, afirma que o cometa pintado por Giotto, na Adoração dos Magos, parte integrante do ciclo de afrescos da Capela degli Scrovegni, em Pádua, represente o cometa Halley.
O ciclo, comissionado pelo mercante Enrico degli Scrovegni, foi iniciado em 1303 e provavelmente, no mesmo ano, ou naquele sucessivo, remonta à Adoração do Magos.
co·me·ta |ê|
(latim cometa, -ae, do grego kométes, -ou)
nome masculino1. [Astronomia] Astro que gira em volta do Sol, descrevendo órbita muito excêntrica. (Consiste geralmente num ponto brilhante [núcleo], envolvido por uma nebulosidade [cabeleira], com um rasto luminoso [cauda].)
cometa barbado
• [Astronomia] O que recebe a luz do Sol pela frente.cometa caudato
• [Astronomia] O que, afastando-se do Sol, recebe a luz pela cauda.cometa crinito
• [Astronomia] O que, tendo a Terra entre ele e o Sol, está em oposição diametral com este.
Dicionário Priberam
A Estrela de Belém é o cometa Halley pintado por Giotto?
Roberta Olson afirma que Giotto tenha visto, sem sombra de dúvidas, o cometa na sua passagem, em 1301, e o pintor ficou tão impressionado que conseguiu realizar uma representação decididamente naturalística, em contratendência à tradição iconográfica até então imperante.
Essa tradição se limitava a representar o astro da natividade como uma estrela pequena e estilizada, geralmente com raios de luz a iluminar o divino recém-nascido, e de acordo com uma parte importante da tradição religiosa daquele período que associava a estrela de Belém a um cometa.
Por outro lado, é noto que o Evangelho de Mateus, o único a mencionar o astro em questão no Novo Testamento, fala genericamente de uma “estrela”, mencionada em quatro distintas passagens:
Depois que Jesus nasceu em Belém da Judéia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do Oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”.
Quando o rei Herodes ouviu isso, ficou perturbado, e com ele toda a Jerusalém.
Tendo reunido todos os chefes dos sacerdotes do povo e os mestres da lei, perguntou-lhes onde deveria nascer o Cristo.
E eles responderam: “Em Belém da Judéia; pois assim escreveu o profeta:
‘Mas tu, Belém, da terra de Judá, de forma alguma és a menor entre as principais cidades de Judá; pois de ti virá o líder que, como pastor, conduzirá Israel, o meu povo’ “.
Então Herodes chamou os magos secretamente e informou-se com eles a respeito do tempo exato em que a estrela tinha aparecido.
Enviou-os a Belém e disse: “Vão informar-se com exatidão sobre o menino. Logo que o encontrarem, avisem-me, para que eu também vá adorá-lo”.
Depois de ouvirem o rei, eles seguiram o seu caminho, e a estrela que tinham visto no Oriente foi adiante deles, até que finalmente parou sobre o lugar onde estava o menino.
Quando tornaram a ver a estrela, encheram-se de júbilo.
Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.
E, tendo sido advertidos em sonho para não voltarem a Herodes, retornaram a sua terra por outro caminho. Mateus 2:1-12
Proto-Evangelho de Tiago
Também no Proto-Evangelho de Tiago, temos esta passagem que menciona uma estrela:
José dispôs-se a partir para a Judeia. Por essa ocasião, sobreveio um grande tumulto em Belém, pois vieram uns magos dizendo:
– Aonde está o recém-nascido Rei dos Judeus, pois vimos sua estrela no Oriente e viemos para adorá-lo?
Herodes, ao ouvir isso, perturbou-se. Enviou seus emissários aos magos e convocou os príncipes e os sacerdotes, fazendo-lhes esta pergunta:– Que está escrito em relação ao Messias? Aonde ele vai nascer?
Eles responderam:– Em Belém da Judéia, segundo rezam as escrituras. Com isso, despachou-os e interrogou os magos com estas palavras:
– Qual é o sinal que vistes em relação ao nascimento desse rei?
Responderam-lhes os magos:– Vimos um astro muito grande, que brilhava entre as demais estrelas e as eclipsava, fazendo-as desaparecer. Nisso soubemos que a Israel havia nascido um rei e
viemos com a intenção de adorá-lo.Replicou Herodes:
– Ide e buscai-o, para que também possa eu ir adorá-lo!
Naquele instante, a estrela que haviam visto no Oriente voltou novamente a guiá-los, até que chegaram à caverna e pousou sobre a entrada dela. Vieram, então, os magos a ter com o Menino e Sua mãe, Maria, e tiraram oferendas de seus cofres: ouro, incenso e mirra.
Depois, avisados por um anjo para que não entrassem na Judéia, voltaram a suas terras por outro caminho.Proto-Evangelho de Tiago, capítulo XXI.
A convicção da historiadora de arte Roberta Olson
As considerações de Roberta Olson deixam poucas dúvidas no fato que a estudiosa seja realmente convicta de que o astro representado seja o cometa Halley:
Quando pintou a estrela de Belém, Giotto recusou as constrições tanto do simbolismo astrológico, quanto da convenção medieval, e deixou o cometa como o havia realmente observado alguns anos antes, quando o astro iluminara com a sua imponente aparição o céu noturno da Itália. O cometa, grande e chamativo, domina o céu do seu afresco. A cabeleira vibra com energia: no seu núcleo, encontra-se a estrela radiante, que representa o centro luminoso de condensação, o qual geralmente se observa dentro da cabeleira, muito mais difusa… A cauda raiada confere um senso dinâmico ao arco desenhado pelo cometa na sua passagem no céu. Assim aparecem os cometas espetaculares a olho nu e assim deve ter aparecido a Giotto o cometa Halley.
O trabalho de Roberta Olson foi amplificado por Paolo Maffei no histórico afresco magistral dedicado ao cometa mais famoso. Segundo Maffei, contudo, a atribuição apresenta alguns problemas porque enquanto o cometa pintado por Giotto é de cor vermelha, aquela de Halley, pelo menos segundo as crônicas chinesas, era branco.
Em 1301, apareceu um outro cometa. Será?
Além disso, em 1301, apareceu um outro cometa, que foi visto entre dezembro e janeiro, ou seja, próprio perto das festividades relativas ao afresco em questão (enquanto Halley foi visível entre metade de setembro e final de outubro).
Paolo Maffei, portanto, afirma ser provável que Giotto tenha confundido os dois cometas, considerando-os sendo um só, e cita em mérito o cronista Giovanni Villani que, em efeito, escreve sobre uma única aparição cometária, a qual durou de setembro a janeiro.
Paolo Maffei examina também outros cometas que apareceram entre 1293 e 1313 (esta última data foi, certamente, muito posterior ao término do ciclo pictórico), realizando uma comparação interessante entre as várias fontes e chegando à conclusão de que os outros astros ou eram imaginários ou muito pouco aparentes para servir como “modelo” pra representação giottesca.
Do ponto de vista astronômico
De um ponto de vista estritamente astronômico, o artigo da historiadora da arte Roberta Olson é passível de críticas. Antes de tudo, era realmente “grande e esplendente” o cometa Halley na sua passagem em 1301?
Conforme o catálogo de Ho Peng Yoke, que compendia as antigas observações chinesas, japonesas e coreanas, a cauda do cometa atingiu um comprimento máximo de dez pés chineses, ou seja, cerca de 15°.
Quanto ao brilho da cabeleira, ficamos na escuridão absoluta, já que nas fontes orientais são praticamente ausentes estimas de luminosidade.
A hipótese de Paolo Maffei, segundo o qual a frase reportada por Ho – “atingindo a grande estrela de Nan-Ho [Prócion]” – significa que Halley se igualou a Prócion (magnitude 0,34) em luminosidade, é pouco convincente porque parece evidente que a atribuição contemple o deslocamento do cometa no céu, que apareceu inicialmente na vizinha parte meridional dos Gêmeos (Tung-Ching).
Muito grosseiramente, tendo presente a mínima distância da Terra atingida naquela passagem (0,18 UA), mas também o fato de que esta tenha acontecido em 23 de setembro, cerca de um mês antes do periélio, e admitindo que os parâmetros fotométricos fossem iguais àqueles atuais, podemos considerar que o cometa tenha atingido uma magnitude compreendida ente 1 e 2.
De qualquer forma, não temos motivos suficientes para considerar que tenha se tratado de uma “imponente aparição”.
Ademais, é muito difícil observar a olho nu, e como claramente representa Giotto, o falso núcleo do cometa.
Cometas Hyakutake, Hale-Bopp, Arend-Roland e vários outros
Isso também é improvável no caso de um grande cometa, até mesmo quando este passa perto da Terra, como demonstraram as recentes aparições do Hyakutake e da Hale-Bopp.
Considerando este último ponto, é lícito perguntar quantos grandes cometas Roberta Olson tenha visto pessoalmente para considerar, com tanta certeza, que esses pareçam iguais à representação de Giotto.
Certamente, os últimos dois cometas não pareciam muito com o paradigma giottesco: uma cabeleira enorme e a cauda que começa larga e se afina progressivamente.
Mas nem mesmo os outros grandes cometas que Roberta Olson possa ter observado pessoalmente, dos anos cinquenta aos setenta, como o Arend-Roland, o Seki-Lines, o Ikeya-Seki, o Bennett e o West não se assemelhavam muito ao cometa de Giotto, pelo menos segundo a iconografia oficial.
Ademais, a cabeleira do astro observado devia ser realmente enorme para respeitar as proporções do desenho, no mínimo com dois ou três graus de diâmetro, enquanto muito dificilmente, num período como aquele de 1301, a cabeça do cometa Halley teria superado as dimensões de meio grau a olho nu.
Se realmente passou um segundo cometa em 1301…
Quanto ao segundo cometa de 1301, se realmente existente (lembramos que somente Pingré o cita com observações exclusivamente europeias e sabemos o quão pouco confiáveis fossem as descrições medievais dos fenômenos celestes), deve ter sido muito menos chamativo que o cometa Halley e, dentre outras coisas, as crônicas orientais não o mencionam próprio.
Essas perplexidades, por outro lado, há muito tempo encontraram uma correspondência histórica e artística.
Já em 1985, portanto, foi publicado um breve, mas preciso, ensaio de Claudio Bellinati que desmontou literalmente a interpretação iconográfica da Olson.
Bellinati sustenta que a representação “naturalística” do cometa é um fato tipicamente padovano, já que não é repetido em outras três representações de Giotto e de sua escola nas duas histórias da infância de Cristo (Basílica Inferior de Assis, 1315-16) e na Adoração dos Magos, no Metropolitan Museum de Nova York, nos quais o cometa tem formas estilizadas.
Tal representação não foi influenciada pela visão direta do cometa Halley ou de qualquer outro cometa que apareceu naqueles anos, mas, sim, da leitura do Evangelho de Mateus e da inspiração proveniente de Pietro D’Abano e de mestres de física da Catedral de Pádua.
A estrela (cometa) de São Mateus era enorme
O cometa descrito no Evangelho de Mateus era grandíssimo, tanto que parecia “que o céu não o pudesse abranger” e, em efeito, o cometa de Giotto tem proporções que transbordam, no alto, do espaço destinado à cena: era mais esplendente que o Sol e o artista pintou o astro com uma cor vermelho-dourada, bem diferente das outras estrelas, e, acrescentamos nós, pouco confiável para um verdadeiro cometa qualquer.
Era o “verbo de Deus” e Giotto lhe confere uma representação simbólica ao pintar a cabeleira com 24 raios e 12 linhas douradas.
Pietro D’Abano, o grande filósofo e médico padovano (1257-1315), cuja obra também influenciará Giotto na realização do ciclo astrológico do Palácio da Razão patavino, interpretava os cometas segundo o tradicional pensamento aristotélico.
Assim, conforme Pietro D’Abano, os cometas são “exalações secas e quentes, que se inflamam… Depois de um grande fogo, a matéria perde a cor vermelha e se colora de preto”.
Segundo Bellinati, essa descrição também se adapta perfeitamente ao cometa de Giotto: em efeito, a sua cor vermelha se dilui progressivamente, em direção ao final da cauda, com uma coloração que tende ao preto.
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*Tradução livre minha do texto em italiano de Gabriele Vanin.