A Biblioteca Apostólica Vaticana custodia um número considerável de impressos antigos e de manuscritos que a qualificam como uma das mais importantes instituições de seu gênero no mundo.
Dentre seus tesouros mais preciosos, destacam-se alguns manuscritos de notável relevância para a história do texto bíblico, como o assim chamado “Códice B” (Vat. Gr. 1209) e, desde o final de 2006, o Papiro Bodmer XIV-XV, o qual, segundo a nomenclatura corrente dos papiros neotestamentários, é denominado P75.
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Papiro Hanna (P75): um dos maiores tesouros da Biblioteca Apostólica Vaticana
Considerado o mais ponderoso dentre os vários papiros conhecidos, o Papito Hanna é avalidado pela moderna crítica textual como um dos principais documentos sobre o qual construir, segundo o plano filológico crítico, o texto do Novo Testamento.
Ademais, o texto é muito símile ao do Codex Vaticanus (cerca de 325 d.C.), sendo, aliás, o documento que concorda majoritariamente com esse códice e vice-versa.
O seu nome deriva de Frank. J. Hanna, filantropo que doou o papiro à Biblioteca Apostólica Vaticana.
Quando foi escrito, no início do III século, o P75 continha por inteiro os Evangelhos de Lucas e de João.
Versão lucana do Pai Nosso
Apesar dos danos provocados pela usura, antes, e pelas condições de conservação, depois, o códice transmite até hoje, em maneira satisfatória, cerca da metade do texto de ambos os Evangelhos, como a versão lucana do Pai Nosso (Lc 11:1-4).
(Lucas 11,1-13; lê-se o pai nosso nas linhas 7-13). imagem: biblioteca vaticana
Para algumas passagens, como Jo 6:12-16, é até mesmo o testemunho mais antigo.
É o manuscrito mais antigo no qual se vê, na mesma página, a transcrição do final de um Evangelho e o início do seguinte, o que constitui o primeiro testemunho direto da ordem dos livros no cânone dos Evangelhos.
(Lucas 24,51-53 e joão 1,1-16). imagem: biblioteca vaticana.
Há quase meio século da sua descoberta, a importância do papiro já é consolidada no plano filológico-crítico.
Menos estudado foi o seu testemunho em relação à formação do cânone do Novo Testamento e ao uso dos Evangelhos nas celebrações litúrgicas das primeiras comunidades cristãs.
A Biblioteca Vaticana possui também o Papiro Bodmer 8 (P72), isto é, o mais antigo testemunho das Cartas de São Pedro, doado por Martin Bodmer, em 1969, a Papa Paulo VI.
Além disso, é o testemunho mais antigo da tradução copta dos Profetas Menores (Pap. Vat. Copto 9), comprado no mercado de antiquário, e provém, provavelmente, da mesma descoberta arqueológica.
A descoberta do Papiro Hanna
Como acontece com a maior parte dos papiros neotestamentários conhecidos, cujo número já supera uma centena, a descoberta e a proveniência do Papiro Hanna apresentam muitos lados obscuros; todavia, é provável que, como quase todos os papiros, ele tenha sido encontrado no Egito.
O lugar pode ter sido uma colina pouco elevada do médio Egito, chamada Jabal al-Tarif, em uma área bastante alta para ser poupada das periódicas inundações do Nilo. A data é por volta de 1952.
Outros manuscritos e também documentos de arquivo gregos e coptos (cerca de uns quarenta volumes, no total) emergiram do mesmo esconderijo. Talvez todos fizessem parte da biblioteca de um mosteiro pacomiano não muito longe, hoje em ruínas, e foram escondidos.
O Papiro Bodmer 14-15 foi doado formalmente a Papa Bento XVI em janeiro de 2007, mas já havia sido depositado na Biblioteca Apostólica Vaticana no final de novembro de 2006.
Nos anos 1955-56, os papiros foram adquiridos, por meio de um mercado de antiquário, sobretudo por dois colecionistas: o suíço Martin Bodmer e o irlandês Sir Alfred Chester Beatty, cujas bibliotecas encontram-se respectivamente em Cologny, na periferia de Genebra, e em Dublin.
Porém, alguns escritos estão guardados atualmente em outras coleções públicas e privadas.
O conteúdo e a confecção
Em origem, o papiro Hanna continha por inteiro ambos os Evangelhos de Lucas e de João.
Este fato tem uma relevância notável para a história do cânone do Novo Testamento, todavia, é necessário explicar os motivos pelos quais o manuscrito não continha os quatro evangelhos que atualmente todas as igrejas reconhecem como canônicos.
Trata-se de uma circunstância que depende da técnica utilizada para a confecção do volume.
Os livros aceitos no cânone do Novo Testamento foram quase todos redigidos até o final do I século. Atualmente, somente para a II Carta de Pedro, inclina-se para uma data mais tardia, até o primeiro quarto do II século.
E foi numa época em que o único formato admitido como digno dos textos com pretensões literárias (categoria na qual entram os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse, mas também os livros do Antigo Testamento) era o rótulo, difundido há muito tempo no mundo greco-romano e naquele hebraico.
Rótulo greco-romano e rótulo hebraico
Uma das diferenças mais relevantes entre os dois tipos de rótulos, greco-romano e hebraico, é o material usado sobre o qual escrever: o papiro, no mundo greco-romano, a pele curtida, no hebraico.
O rótulo tinha numerosos inconvenientes, como o incômodo de ser enrolado e desenrolado para poder lê-lo, o que causava uma rápida usura.
Mas, sobretudo, a quantidade de texto que podia conter era bastante limitada e condicionava o comprimento das obras literárias, requerendo a sua divisão em livros.
Por esse motivo, foi teorizado que as duas partes do projeto literário mais ambicioso do Novo Testamento, isto é, o Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos, tenham sidos concebidas como uma obra unitária, mas que os dois textos tenham sido difundidos separadamente, já que cada um atinge um comprimento igual ao de um rótulo standard.
O debute do códice
No I século, debuta um outro tipo de suporte para a escrita, mais ágil e mais econômico: a caderneta de folhas de papiro ou de pergaminho, amarradas com um cordel ou inseridas em uma custódia.
Este tipo de manufato era usado prevalentemente para textos menos formais, como as cartas (vale a dizer, todos os outros textos do Novo Testamento).
O novo formato apresentava várias vantagens em relação ao rótulo: não somente um custo muito inferior e uma maior maleabilidade, mas, sobretudo, oferecia a possibilidade de transcrever em um só volume uma maior quantidade de texto.
Esta superioridade do códice em relação ao rótulo foi logo entendida pelos cristãos, cuja vida comunitária e a missão evangelizadora requeriam, por razões pastorais e apologéticas, um recurso constante aos livros, em particular às Escrituras.
Códice x rótulo
A adoção do códice por parte dos cristãos foi tão imediata e total que até se pensou que ele tenha sido inventado em âmbito cristão e adotado como sinal distintivo, em uma polêmica velada contra as culturas circunstantes greco-romana e hebraica, ligadas ao rótulo.
Mas, a este ponto, os dados disponíveis indicam que o códice é de origem pagã, talvez romana, e tenha aparecido antes da difusão do cristianismo, já que é mencionado desde o poeta latino Marcial (40-cerca 101) e a sua adoção por parte das primeiras comunidades cristãs responde mais a razões práticas que ideológicas.
Todavia, a difusão dos códices permaneceu limitada até o III século (mesmo sendo o dobro que o rótulo) devido à técnica usada, isto é, a sobreposição das folhas dobradas de papiro sob a forma de caderno único.
Por razões mecânicas, não podem ser sobrepostas e dobradas mais de uma cinquentena de folhas, cuja altura e largura são predefinidas por considerações estéticas e motivos comerciais.
O resultado é que um manuscrito como o P75 não podia conter mais de dois evangelhos. Nada impede, porém, de se supor que a este papiro se juntasse um outro tomo que, infelizmente, foi totalmente perdido, com os primeiros evangelhos, os de Mateus e de Marcos.
Antiga história do P75: destinação e uso
A origem do P75 e as primeiras fases da sua antiga história podem ser reconstruídas de maneira relativamente satisfatória. O papiro foi copiado por um escriba profissional, mesmo não se tratando de um manuscrito de luxo, mas simples e destinado a um uso prático.
Vê-se pelo formato usado (cerca de 23 x 12 cm), com as margens muito estreitas e a ausência de decoração. Aliás, o único espaço livre são duas linhas brancas na página em que se passa do Evangelho de Lucas àquele de João.
Com muita probabilidade, P75 foi transcrito para ser usado durante as celebrações litúrgicas de uma comunidade cristã. Com o tempo, porém (talvez pouco tempo depois), o manuscrito se estragou com o uso e começou a perder páginas.
Somente então decidiram encaderná-lo, quando já havia se tornado inútil a fins práticos.
E restos das primeiras e das últimas folhas foram colados juntos para reforçar uma encadernação muito pobre.
Por que? A hipótese é de que os cristãos, como os hebreus, eram pouco propensos a jogar fora textos sagrados e, certamente, nunca os teriam queimado.
Mas também, quase certamente, porque o manuscrito tinha se tornado uma relíquia preciosa que, talvez depois, foi usada como amuleto nos doentes para implorar a sua cura, segundo uma práxis bem atestada até os dias de hoje.
Quando já estava reduzido a estas condições (bem similares àquelas atuais), provavelmente o manuscrito foi conservado, junto a muitos outros papiros, em um mosteiro que seguia a regra de São Pacômio, fundador do monaquismo egípcio, morto em 347.
O manuscrito, então, chegou ao mosteiro após ter sido escrito e usado por cerca de um século em uma igreja ou capela da qual foram perdidos os vestígios.
Documentário O Evangelho mais antigo do mundo
Durante os 50 minutos do documentário O Evangelho mais antigo do mundo (2020), também são mostrados alguns lugares da Biblioteca Apostólica Vaticana jamais vistos antes, como o bunker subterrâneo onde está guardado o Papiro Hanna.
O diretor é Matteo Ceccarelli, a produção é da Officina della Comunicazione e Vatican Media, em colaboração com a Biblioteca Apostólica Vaticana, e a distribuição é de VatiVision.
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*Fonte: Tradução livre e adaptação minhas para este post do artigo Cenni sulla storia, sul contenuto e sulla finalità del papiro Bodmer XIV-XV (P75), Biblioteca Apostólica Vaticana.